segunda-feira, 26 de setembro de 2011

COLECIONADOR DE PEDAÇOS DE GENTE

Num ponto localizado entre as serras do Mar, da Bocaina e da Mantiqueira, a pouco mais de 30 quilômetros de Cunha, existe algo muito mais impressionante que a paisagem visível formada por pinheiros, paredões de montanhas no horizonte, e pastos de gado leiteiro. A última cidade do estado de São Paulo antes da estradinha de terra e pedregulhos, margeada por um precipício que fará os motoristas suarem frio antes de chegarem a Paraty, no Rio de Janeiro, também abriga 237.026 Pedaços de cerca de três milímetros cada um de pele Humana, 4.684 partes de Cérebros, 7.995 de Bocas, 3.715 de Línguas, 9.648 lasquinhas de Ossos, 1.004 pedacinhos de Corações, 69.899 de Estômagos, 1.922 de Olhos e mais 851.487 partes de outros 111 órgãos.

São 1.187.380 pequenos Pedaços de Gente. Pelos cálculos do médico patologista Luiz Celso Mattosinho França, guardião do acervo, seria possível montar cinco mosaicos de corpos inteiros. Cada um desses filetes, preservados no interior de retângulos de parafina, faz parte da coleção que começou a ser montada em 1961, quando ele inaugurou o Laboratório Mattosinho de patologia clínica, um dos mais respeitados do Brasil, e foi concluída em 2001, depois da semi-aposentadoria.

Durante 50 anos, Mattosinho guardou tudo que chegou às suas mãos para que fossem descobertos tumores, úlceras, inflamações ou qualquer outro problema. “A lei manda preservar o material por cinco anos”, conta o patologista. “Mas eu tenho um defeito. Nunca consegui jogar nada fora”.

A mudança dos bichos e plantas para os seres humanos deu-se em 1954, quando ele ingressou na faculdade de medicina da Universidade de São Paulo. Pouco depois, decidido a terminar nos Estados Unidos a residência que fazia no Hospital das Clínicas de São Paulo, conseguiu um emprego de médico legista da polícia paulista. “Isso dava bastante dinheiro”, contou, para espanto dos profissionais que se aventuram na área hoje em dia.

Depois de quatro anos nos Estados Unidos, onde estudou no Memorial Hospital de Nova York, voltou ao Brasil, abriu o laboratório particular e começou a trabalhar também no Hospital do Servidor Público de São Paulo. Além do início da coleção, o período marcou a luta de Dr. Mattosinho para tirar dos bastidores os médicos patologistas brasileiros. “Esse tipo de especialista não conhece os pacientes, mas suas células”, diz. “Embora apareçam pouco, seu trabalho é essencial para o diagnóstico da doença”.

Entre os cadáveres que nessa época passaram pelas suas mãos está o de Gabriel Quadros, pai de Jânio, então governador de São Paulo. Gabriel foi assassinado pelo marido de sua amante, que o surpreendeu no quarto da casa. “Foi uma autópsia difícil”, lembra. “Como ele foi alvejado por uma saraivada de tiros e morreu girando o corpo para tentar defender-se, havia inúmeras perfurações”.



Aparentemente sem serventia para grande parte da população, o arquivo do Dr. Mattosinho é um tesouro da medicina preservado nos dois galpões que ergueu em sua fazenda exclusivamente para abrigar o material. “É um acervo que guarda 50 anos de história”, esclarece David Braga Junior, médico do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. “Entre as diversas pesquisas que podem ser feitas, é possível saber como as doenças evoluíram e como foram tratadas ao longo das últimas cinco décadas”. 


Fonte: Revista Vêja.

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